(...)
Passamos ao pequeno jardim, onde abóboras suspensas no ar - como
terão feito este truque - iluminam este espaço onde a noite se adensa. Trazem-nos
um cálice, dizem-nos que são lágrimas de feiticeira, néctar muito raro, que
temos que provar, pois nunca esqueceremos o sabor daquela bebida exótica.
Começo por saborear um pouco, deixando o sabor apoderar-se dos meus lábios,
sinto uma mistura de doce com pimenta, que fervilha na pele, convidando a beber
mais. Arrisco e sinto que um leve fogo me queima a garganta, e avança pelos
meus músculos, sinto como que um vórtice me suga e perco os sentidos...!
(Re)leia aqui integralmente a primeira parte deste conto...
I Remember/Stranger Than You Dreamt It
Tha Phantom of the Opera
Acordo ouvindo vozes há minha volta, parecendo distantes como se
um vidro estivesse entre nós... Abro mais os olhos e vejo que existe, sim, um
vidro, à minha volta, redondo, com filigranas de cor rubi... como os
do copo de que acabei de beber... Vejo à minha frente a cara do Maître, um
gigante...Não, não é gigante, sou eu que estou minúscula, dentro do cálice que
me ofereceram. Ainda adormecida de todas estas novas sensações, tento perceber
o que se passa, consigo perceber que não chegarei ao topo, não vislumbro
como poderei sair... O Maître diz-me "Não podes sair", como se
adivinhasse os meus pensamentos. Começo a recuperar as forças, e bato no vidro,
que se passa, onde me levas, responde-me...
Entrega-me noutras mãos e vejo à minha frente aqueles olhos
perturbadores que ao início da noite me chamaram a atenção... Ao olhá-lo mais
de perto, sinto o corpo adormecer, fico quieta, presa naquele olhar... Bebeste
as lágrimas de feiticeira... Quando te vi, sabia que as provarias... Que queres
de mim??? Como aconteceu isto...? Pergunto, com um misto de confusão, medo,
sensação de que apenas posso estar a sonhar... As lágrimas de feiticeira são
poderosas, quem as bebe fica prisioneira de quem serviu o cálice... Porque me
queres como tua prisioneira? Os seus olhos não paravam de me fixar, como se
estivessem mais fascinados comigo, do que eu estava com tudo aquilo, sentia-me
já não com medo, mas como que hipnotizada...
Não irei fazer-te mal, prendi-te neste cálice porque quero
olhar-te, um dia já fui assim, e perdi quem eu fui... Quem tu foste? Já fui
humano e com o olhar cheio de esperança como tu, tornei-me numa criatura da
noite e não me lembrava de como era antes... Quero levar-te comigo,
posso contemplar-te durante horas a fio, será que consegues devolver-me um
pouco do que era...?
Fiquei suspensa daquelas palavras, daquele olhar saudoso e que
sofria... Não precisas de mim para te lembrares como é ser humano, disse-lhe,
se não estivesse ainda dentro de ti, não o terias reconhecido quando me
olhaste, eu seria indiferente para ti, apenas mais uma mortal... Sei que te
lembras, e sei que também te lembras que não se prende a esperança, porque
senão ela morre...
Tens razão, não posso manter-te aqui... Passou a mão por cima do
cálice e de novo um vórtice me puxou, desta vez para fora do copo. Obrigada,
disse eu, e sem saber se o devia fazer, peguei-lhe na mão, enorme, com garras,
assustadora... Por momentos vi, vi quem tinha sido aquela criatura do
imaginário... Vi que foi um homem com sonhos, alegrias e, sim, esperança... Vi
como perdeu tudo isso, como se transformou num dos nossos medos mais
profundos...
Senti vontade de ficar ali mais um pouco, apesar de ele me dizer
"Estás livre, podes ir embora, ninguém te travará." Fiquei, mais um
pouco, lembrei-lhe daquelas pequenas coisas que fazem os humanos felizes, vi um
brilho nos olhos dele, ouviu tudo e disse, "Preciso ir-me embora, apenas
na Noite das Bruxas podemos estar entre os humanos, a noite está a
acabar."
"Posso voltar na próxima Noite da Bruxas?", perguntei.
Não esperei pela resposta, "Até daqui a um ano, estarei aqui", e saí,
livre, como tinha chegado.
Continua dia 04.Nov.13....
Foto de Isa Lisboa |